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(Foto: Matheus Melo/ Divulgação)

Um papo com Flaira Ferro sobre “Afeto Radical”: “Tornar a canção, a música e os ritmos uma coisa muito mais humana”

A artista fala sobre seu novo álbum, que traz uma produção focada na fusão de ritmos e a música como ato político.

Forte nome da geração mais recente na música pernambucana, Flaira Ferro lançou na última sexta-feira de março (28) o seu terceiro álbum solo, Afeto Radical. Neste disco a cantora e dançarina pernambucana se aprofunda nas suas vivências com a cultura popular pernambucana e atravessa o rock e o pop – seus antigos conhecidos desde o álbum Virada no Jiraya (2019) – como uma série de elementos do frevo, do maracatu rural, caboclinho, cavalo marinho e outros ritmos populares locais, até se aproximando do experimental em alguns momentos.

Para colocar o álbum de pé, Flaira reuniu referências suas na produção e nas canções do álbum, entre eles o percussionista e produtor Guilherme Kastrup, o cantautor Lenine e Elba Ramalho, além da violeira pernambucana Laís de Assis.

Em conversa com a Revista O Grito!, Flaira fala sobre as inspirações, conceitos por trás do álbum o processo de produção e alguns dos temas encapsulados nas letras. Leia a entrevista na integra.

Nesse álbum existe muita indignação com o mundo e questões sociais e políticas, mas ela vem apoiada em um otimismo que pensa nas alternativas para os problemas, por isso pensei que o título do álbum também fosse um tipo de conceito para pensar o mundo de forma diferente. O Afeto Radical já é algo que você pratica? 

Essa busca pela vida é algo que me captura enquanto artista, enquanto ser humano aberto e sensível a olhar o mundo pela perspectiva da saúde. Eu gosto de entender a vida. Então eu gosto de pensar a vida por essa perspectiva da constante transformação e constante geração de vida. Nesse sentido, o que move a minha composição está ligada a um caminho, a uma busca por uma percepção que ela seja altruísta. Eu sinto que o Afeto Radical é uma resposta desse desejo de conseguir tirar de tudo que aparece para a gente algum ensinamento,  mesmo nos momentos mais adversos, mesmo nos momentos mais sombrios, mais obscuros, há algo para a gente capturar que está preparando e fortalecendo. 

Quando eu penso nesse termo, o Afeto Radical, eu entendo que a gente vive num mundo que está ocupado e bombardeado por notícias e por acontecimentos de muito desamor, muita intolerância e preconceitos. Uma violência barata que a gente vê constantemente nas redes sociais, nos noticiários, as questões climáticas, catástrofes que são frutos de escolhas equivocadas que a gente vem fazendo. Eu fico pensando em como que, mesmo nas situações de adversidade, a gente não se deve se render à agressividade e à violência, sabe? Como é possível, em situações de extrema dificuldade, a gente ainda assim optar pela colaboração, ainda assim optar por caminhos de união. 

É um desejo, né? Não é o que eu consigo realizá-lo, é um horizonte, é um lugar pra onde eu gosto de olhar. Como bem diz Galeano, a utopia serve pra exatamente a gente ficar direcionando os nossos passos. Então é desse lugar que vem, como é possível a gente ser radicalmente vivo, como diz Ailton Krenak. Eu acho que com esse título, com essas letras, esse tom que esse disco vem trazendo, ele é o reflexo desse desejo da gente de transcender as nossas limitações egoísticas para tentar usar um caminho mais amoroso, mais afetuoso, mais humano. 

A gente tem uma relação com as músicas hoje em dia, por conta da indústria musical, onde você tem que caber naqueles 15 segundos do reels, nos 30 segundos dos stories.

Entre seu último lançamento e o Afeto Radical você se tornou mãe, uma mudança que reflete em todos os âmbitos da vida de quem gesta. Quais mudanças a maternidade mudou sua relação com o trabalho e com a música em si?

Muda muito. Eu sinto que a chegada de Dom me colocou num outro ritmo de trabalho onde ele, de fato, é a minha principal prioridade na vida, a minha maior obra prima. É a figura que mais me instiga atualmente a querer crescer e aprender. É o meu filho, né? Ele com certeza é um portal de convocação ao movimento, ao crescimento. Qualquer coisa que eu venha fazer precisa, de alguma forma, estar alinhada com essa relação visceral que eu vivo todos os dias. Eu sinto que ele me convoca a estar sempre na minha essência porque ele é pura essência.

Eu falo nas coisas de ordem poética e subjetiva, mas na ordem prática também. Por exemplo, eu quero criar coisas que ele também possa viver. Eu penso, hoje em dia, em compor coisas que façam sentido para conversar com ele. Até nas estruturas dos lugares aonde eu vou trabalhar porque eu levo ele para onde eu vou. Ele vai para os meus shows desde a barriga.

Então isso alterou muito no sentido de que hoje eu quero estar em ambientes aonde eu sinto que meu filho e que as crianças possam ser bem-vindas de um modo geral, onde eu possa conciliar essa minha relação de cuidado e de amor com o meu trabalho, e te digo isso de um lugar de desafio também, porque não é fácil. Em muitos momentos eu me vejo completamente exaurida, esgotada, às vezes até desacreditada, quando eu percebo o quanto que nós, enquanto sociedade, hostilizamos os espaços criativos para [criar] essa não-relação e não-interação do adulto com a criança. Muitas vezes fica claro: aqui não cabe a criança, aqui não cabe a mãe. A invisibilidade é forte.

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Flaira, em ensaio para o novo disco: “Essa busca pela vida é algo que me captura enquanto artista”. (Foto: Matheus Melo/ Divulgação)

Falando do álbum, nesse disco você traz uma produção que une o pop e o rock com diversos elementos da música popular pernambucana. Eu percebo que você conseguiu fazer esse encontro certo porque você tem uma noção muito certeira das suas referências e do que você quer trazer. Como foi trabalhar na produção desse disco e como foi combinar estilos musicais aparentemente tão distantes?

O que facilitou muito na criação desse arranjo foi as pessoas com quem eu criei e construí eles. Eu chamei o Kastrup pra fazer a produção musical do disco, ele que é uma figura extremamente eclética e completa, que sabe lidar com diferentes sonoridades. Ele transita pela música experimental, pela música contemporânea, então tem uma inteligência criativa que facilitou muito para gente desbravar essas sonoridades. Eu falei pra ele desde o início sobre a minha pesquisa de tentar trazer elementos da cultura popular, mas sem regionalizar o disco, sem deixar ele com códigos territoriais, para que a música pudesse se tornar assimilável para pessoas que nunca ouviram ou assistiram uma orquestra de frevo, um grupo de maracatu rural, de cavalo marinho, de caboclinho. Nessa tentativa de realmente desterritorializar, de tornar a canção, a música e os ritmos uma coisa muito mais humana do que necessariamente específica de um povo.

O encontro com Henrique Albino foi fundamental. Ele é um super músico, multi-instrumentista, e fez os arranjos de sopro e a direção musical de algumas faixas, assim como Miguel Mendes, que já toca comigo, meu parceiro de shows e de banda, que tem uma esperteza com programações, com sínteses, com baixo. Lucas Dan, que é também é multi-instrumentista, toca sanfonas, beats, sintetizadores e teclas. Acho que foi algo desse encontro com esses quatro músicos, principalmente, que conseguimos chegar num som diferente dos outros trabalhos que eu tenho. Há uma presença bem forte dos sopros, dessa rítmica que transita entre o rock e outras linguagens e há também a suavidade da sanfona, por exemplo. É um disco com pouquíssimas guitarras em relação ao disco anterior, Virado no Jiraya, que era na estrutura de uma banda de rock. 

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Flaira: “sinto que cantar é dançar e dançar é cantar”. (Foto: Matheus Melo/ Divulgação)

As participações especiais também tem a ver com isso. Quando pensei em Lenine, eu automaticamente me identifiquei. Essa pesquisa que ele desenvolve no trabalho dele, da relação com os maracatus e os frevos, mas que vai para outros lugares, assim como Elba Ramalho, que é essa voz que traduz não só a música brasileira e nordestina, mas a música do mundo. É uma obra vasta, uma pessoa fundamental para abrir caminhos para toda essa geração de cantores, de artistas que veem nela um farol. Junto a ela, a instrumentista da minha geração, que é Lais de Assis, que é essa violeira fenomenal. É uma mulher que, meu Deus, o mundo precisa conhecer. Ela tem um talento nato, uma força rara. 

Eu havia pensado nisso ouvindo o álbum, o quanto Lenine e Elba Ramalho são dois nomes meio que especialistas em fazer essa desterritorialização desses gêneros [pernambucanos]. Eles levam muita coisa do Nordeste para outros públicos porque conseguem reorganizar esses elementos rítmicos em outros estilos, que eu acho que é o que você fez no álbum.

E eu faço até um parêntese para essa questão da desterritorialização para não parecer também apropriação, né? Estamos deslocando [os ritmos] da origem, mas entendendo que somos dessa origem também, e por isso continuamos a expandir, para que ela ganhe novos novos lugares. Eu me sinto com autoridade de brincar com o frevo, de levar ele para outros lugares, porque eu vivo o frevo desde o berço, é minha formação.

Por eu ter vivência, por minha vida ser vinculada com esse ritmo, sinto a autorização para brincar com os elementos dessa dança e desse ritmo, de modo que eu possa passear por outros lugares. Eu não sinto que eu tô desconstruindo, mas eu me sinto em constante construção desse ritmo e assumo como dos outros ritmos que compõem a minha formação cultural, como eu falei aqui do cavalo marinho, do caboclinho e do maracatu. Não é apropriação ou deslocamento alienado, mas uma comunidade que vive a cultura popular.

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Elba Ramalho convidou Flaira Ferro para uma participação em seu show no Carnaval do Recife de 2025 (Foto: Rodrigo Palazzo/ Divulgação)

É o que Lenine faz também. Ele é fruto e filho da mesma terra que eu, somos conterrâneos e compartilhamos dessa cultura que tá na nascente, das nossas formações enquanto ser humano, assim também como Elba, né, que vai cantar profundamente o Brasil e as vivências do que ela foi recebendo na formação cultural.

É diferente de chegar alguém de outros lugares que queira brincar com esses ritmos, e até pode, né? Porque a música,  quanto mais sem fronteiras ela for, mais bonito também esse potencial dela agregar e unir as pessoas, mas eu acho importante deixar registrado que eu só tomo a liberdade de brincar com esses elementos porque eles são, é, a minha formação, eles estão no berço.

Entrando um pouco mais no disco, em “Lacre” você diz em um verso que tudo virou “Senta, Senta/ Bate, Bate, Bate, Bate” e eu interpretei esse trecho como uma crítica às repetições que surgem no modo de se fazer música no Brasil atualmente. Qual a origem dessa provocação que tu faz?

Entre as origens tem isso que você falou. A gente tem uma relação com as músicas hoje em dia, por conta da indústria musical, onde você tem que caber naqueles 15 segundos do reels, nos 30 segundos dos stories. Quem é que dita a forma como a gente tem que compor, criar, dançar, se mexer, se mover?

É uma crítica a essa indústria da superficialidade, onde todo mundo acaba sendo induzido a aparecer, porque o algoritmo seleciona quem está ali expondo mais o corpo. Tem até uma brincadeira que alguns artistas têm feito, postando fotos de biquíni para divulgar o disco, porque o algoritmo entrega mais fotos do corpo do que quando se posta um objeto ou uma ideia cenográfica. Eu faço realmente essa crítica. E nesse verso também, eu questiono essa hipersexualização da mulher, onde a gente tem que sempre estar correspondendo ao mesmo gesto, ao mesmo movimento como a necessidade de atender o desejo de algum desses criadores dessas mídias que estão a favor apenas do sensacionalismo. 

Então eu faço essa brincadeira de ver que há uma padronização para que se encontre uma arte sempre genérica, pouco autêntica, de fácil assimilação que a gente não tem questionado. A gente não questiona mais o por que a gente se movimenta, por que a gente senta, por que a gente bate, por que a gente canta, vira uma coisa quase que mecânica. 

Me vem a imagem de Charlie Chaplin em Tempos Modernos (1936), onde ele fica ali naquela fábrica, fazendo aquele produto, totalmente alienado do que ele produz ali, uma constante repetição de movimentos que engessam e apequenam a nossa capacidade de compreensão e consciência do mundo. 

Seu trabalho sempre teve um caráter muito performático, misturando música e dança, e até no jeito que você canta e posiciona a voz. Essa é uma característica que você tem levado nos shows dessa turnê?

Exatamente, sinto que cantar é dançar e dançar é cantar. A gente separa só pra facilitar a assimilação, pra poder explicar didaticamente. Mas a minha compreensão de como a voz começou a sair foi pelo movimento, pela observação da minha garganta. E aí eu fui entendendo que era a mesma coisa, né? Que dançar era cantar, mas que pra poder cantar e saltar com a voz era preciso ter muito trabalho de autoconhecimento, entender os silenciamentos e porque para as mulheres é mais difícil. Eu me interesso por essa linguagem que ela transita pelo visual, eu gosto de brincar com os sentidos de quem escuta e eu acho que eu gosto de ter a liberdade de poder passear por diferentes entonações, diferentes interpretações para poder criar uma paisagem sonora também, entendendo que a voz é um instrumento que você pode ir moldando, a depender da intenção que você quer dar em cada letra que você está falando. As pessoas podem esperar que nos shows eles estão regados de muita dança e de cenas e dessa relação com o teatro e com a música de um modo bem amplo.

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(Foto: Matheus Melo/ Divulgação)

Ouça Flaira Ferro – Afeto Radical

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