A figura de Maria Bonita sempre esteve presente no imaginário popular como a companheira de Lampião, o mais célebre líder cangaceiro da história do Brasil. Mas o que aconteceria se essa narrativa, há décadas centrada em personagens masculinos, fosse contada a partir do olhar das mulheres? É com esse objetivo que Maria e o Cangaço, nova série nacional da Disney+, propõe uma revisão do passado ao iluminar a experiência de Maria Gomes de Oliveira e de outras cangaceiras que viveram no sertão nordestino durante o auge do cangaço.
Estreada no dia 4 de abril, a série tem direção geral de Sérgio Machado e é protagonizada por Ísis Valverde, no papel de Maria Bonita, e Júlio Andrade, como Lampião. São seis episódios lançados simultaneamente na plataforma, que reconstroem o ambiente árido, violento e ao mesmo tempo fascinante do sertão dos anos 1930, com destaque para as dinâmicas íntimas e sociais das mulheres dentro dos bandos armados.
A produção é livremente inspirada no livro Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, da jornalista e escritora Adriana Negreiros, obra que se tornou referência ao trazer uma nova lente para a compreensão do papel feminino no movimento cangaceiro. Em entrevista à Revista O Grito!, Negreiros compartilhou o processo que a levou a se aprofundar nesse universo, muitas vezes romantizado, mas ainda pouco explorado do ponto de vista das mulheres.
“Eu sempre tive muito interesse pelo Cangaço, porque eu sou nordestina. Sou do Ceará, embora eu tenha nascido aqui em São Paulo, eu me criei no Ceará. Meus pais são do Rio Grande do Norte, minha família toda é do Rio Grande do Norte. Então eu sempre cresci ouvindo histórias de Cangaço e tudo mais, sempre tive muito interesse no tema”, afirma.

Ao escolher escrever sobre o tema, a autora decidiu buscar um ângulo que fugisse da abordagem tradicional. “Muito já havia sido escrito sobre o Cangaço, a gente já tinha uma bibliografia vasta sobre o tema. E, nessa época em que eu resolvi escrever esse livro, eu estava muito influenciada pelas teóricas do feminismo. […] Então eu pensei: bom, talvez o ângulo que eu esteja procurando seja exatamente contar essa história, que já é tão marcadamente masculina, a partir de um viés feminino. Ou seja, contando essa história a partir das mulheres do Cangaço. E assim, elegi Maria Bonita como sendo o fio condutor, por ela ser a mulher mais importante do Cangaço.”
A proposta não era apenas fazer uma biografia convencional, mas construir uma narrativa coletiva a partir da figura de Maria Bonita. “Procurei não fazer um relato muito individualizado. Não é relatar apenas uma experiência feminina no Cangaço, que é uma experiência coletiva, individualizando demais na perspectiva de Maria Bonita. Desse modo, eu decidi então que Maria Bonita seria uma espécie de condutora para contar a experiência feminina no Cangaço, de um modo que, a partir dela, eu pudesse também contar as histórias de outras mulheres.”
Invisibilidades e memória
Durante a pesquisa para o livro, Negreiros percebeu que a imagem de Maria Bonita como uma espécie de líder feminista entre os cangaceiros era mais um produto do imaginário do que uma realidade histórica. “Quando eu propus uma biografia sobre a Maria Bonita, eu devo confessar que também tinha uma visão romantizada sobre ela. Eu a tinha muito mais na conta de uma mulher que fosse uma liderança entre as demais mulheres do que, de fato, aquela que ela foi na realidade.”

“Maria Bonita era uma mulher do seu tempo, uma mulher que seguia os códigos da sua época e que não desenvolvia, no Cangaço, uma liderança entre outras mulheres, nem uma liderança de gênero contra a opressão masculina — que é um pouco a visão romantizada que ainda se tem hoje sobre a presença dela no Cangaço.”
Ainda assim, a autora defende que Maria rompeu com as amarras impostas às mulheres de sua época. “Apesar de Maria Bonita não ter sido essa liderança feminista que muitas vezes se acredita que ela tenha sido, ela foi uma mulher que, para o seu tempo e sua época, rompeu com padrões.”
Maria Bonita tinha um espírito aventureiro e que deu vazão a ele ao decidir abandonar aquela vida que não a satisfazia, mergulhando numa existência arriscada ao lado de Lampião
Adriana Negreiros
Além da ousadia da escolha, Adriana chama atenção para uma dimensão pouco abordada na trajetória da cangaceira: a maternidade. “Maria foi uma mulher que, como a maioria das cangaceiras — quase todas, na verdade —, precisou enfrentar uma gravidez no interior do Cangaço. […] E, ao final dessa gestação, precisou abrir mão da maternidade e entregar o filho para doação — uma situação extremamente violenta para qualquer mulher, especialmente para aquelas que desejam desenvolver a maternidade.”
Representação e potência simbólica
Negreiros afirma que a literatura e o audiovisual brasileiros tradicionalmente priorizaram a figura masculina ao abordar o cangaço. “A literatura sempre, de fato, priorizou as figuras masculinas do Cangaço. […] Sempre foi um olhar muito voltado para o espaço público, ou seja, os homens: os cangaceiros, os volantes e os políticos envolvidos naquela conjuntura. […] E as mulheres, por todos esses séculos de opressão, por todos esses séculos de aprisionamento no espaço da intimidade, ocuparam esse lugar privado — que foi negligenciado por uma certa história.”

Ela defende que, ao observar essas mulheres no espaço íntimo, é possível compreender também as disputas no espaço público. “Se Lampião, Corisco, se aqueles homens viveram o que viveram nos anos 1930 — que foi quando as mulheres entraram no Cangaço —, foi porque havia aquelas mulheres ali, num pano de fundo, que permitia a esses homens agirem como agiram.”
Para além disso, a presença feminina foi crucial na construção da imagem cultural e simbólica do cangaço. “A estética do Cangaço — que é algo que levou o movimento para a moda, que o fez ser apropriado pela indústria cultural — é muito tributária da presença feminina no Cangaço.”
Um legado de coragem
Ao comentar a adaptação para o Disney+, Adriana compartilha a emoção de ver, pela primeira vez, a história de Maria Bonita narrada com ela em primeiro plano. “Foi muito — eu diria até emocionante — perceber o seguinte: que há um movimento, um sinal dos nossos tempos, de começarmos a olhar para a história não apenas por aquele viés que sempre nos guiou, que é o viés do homem, mas também a partir de outros grupos.”

Ela lembra que, quando decidiu escrever a biografia, enfrentou resistência até mesmo no meio acadêmico e entre pesquisadores. “Diziam assim: ‘Por que você, em vez de escrever sobre a Maria, não escreve sobre o Lampião, por exemplo, que é o personagem mais importante?’ […] E diziam claramente: ‘Você não vai encontrar nada, não tem nada sobre Maria Bonita. Ela não teve importância nenhuma. As mulheres não tinham importância.’”
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Hoje, com a estreia de Maria e o Cangaço, ela enxerga um movimento em curso para resgatar personagens historicamente apagados. “É a primeira vez que o Cangaço é contado a partir da história das mulheres — e isso é muito revolucionário. […] Não se trata, obviamente, de ignorar a participação dos homens, mas de jogar luz sobre esses personagens que sempre foram esquecidos pela história.”
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